"Amanhã fico triste … amanhã !
Hoje não … Hoje fico alegre !
E todos os dias,
Por mais amargos que sejam,
Eu digo:
Amanhã fico triste, hoje não … "
(Poema encontrado na parede em um dos dormitórios de crianças
judias do campo de extermínio nazista de Auschwitz)
Resiliência, "heróis da resistência", paciência.
"Por sobre a vivência", supervivência, experiência...
Sentir, olhar, pesar, viver, perder.
Luto, lutar, transmutar...
A vida é como um grande armário que devemos estar sempre a organizar. Limpar as gavetas da alma, retirar os "modelitos" surrados, ultrapassados.
Limpar, organizar, separar, doar, desapegar..
A arte milenar chinesa, Feng Shui, que nunca consigo acertar na pronúncia, nos diz que é preciso desapegar do velho ou desnecessário, para que o novo e primordial preencham os espaços que surgem.
Desapegar não é deixar de amar, mas saber que não é preciso possuir, para lembrar; ter, para manter em nossos corações.
Viver é um misto de lutar, enlutar, para poder renascer e começar tudo de novo, de preferência de uma forma nova.
Mas será que aquela estória de que "da vida nada se leva" vem daí?
De concreto, material, pode até ser. Como Miguel Fallabela sempre diz: "Caixão não tem gaveta e você não é Faraó egípcio, é? Então."
Uma vez, assistindo um documentário sobre o Caminho de Santiago de Compostela, uma cena em especial me chamou muita atenção. O repórter estava entrevistando os peregrinos no início da jornada. Sua intenção, além de mostrar que tipo de público encontramos nesta situação, era desvendar o que cada um trazia em sua bagagem. Ele aproximou-se de uma mulher de uns trinta anos, brasileira, classe média, e pediu que ela mostrasse para as câmeras o que estaria carregando durante o Caminho. Para surpresa do repórter, entre os itens principais estavam: um estojo portátil de maquiagem, rímel, um secador de cabelos portátil também, um kit de escovas e pentes, roupinhas "muito básicas", entre outros apetrechos "fundamentais" a caminhada. No total, seus pertences estavam acomodados em duas malas, com rodinhas, além de uma frasqueira.
No meio da jornada, novo encontro com os peregrinos e nova verificação da bagagem física e emocional de cada um deles. A moça, se comparada com o início da matéria, estava "um trapo". Descabelada, já que até ali não tinha encontrado qualquer tomada onde pudesse conectar e usufruir de seu secador turbo. Devido ao peso, ela muitas vezes se distanciava do grupo. Assim, lá pelas tantas, decidiu jogar cargas ao mato se desvencilhando de parte do excesso que carregava. Mesmo assim, dizia, ainda tinha esperanças de encontrar respostas para suas angústias, afirmando diante das câmeras não abandonar sua meta. O grupo pernoitou em um albergue muito simples e seguiu a pé. O repórter, tomou sua condução e foi esperá-los no ponto de chegada.
Todos conseguiram e a tal moça estava lá. Mais uma entrevista:
_Encontrou suas respostas? _ perguntou o repórter.
E a moça respondeu:
_Sim. Sinto-me muito mais leve... não sei se porque me desfiz do excesso de peso que carregava ou se por ter descoberto que aquilo que passei uma vida inteira achando fundamental para a minha felicidade, na verdade é totalmente dispensável.
Provavelmente deve ter sido muito doloroso para ela se desapegar de objetos tão íntimos, assim como de comportamentos já tão automáticos. Quando não agimos assim por bom senso a vida nos corrige, nos cria bolhas nos pés, dores nas costas, para que sejamos capazes de reagir, agir, soltar...
Lutos são situações como esta. Onde nos armamos até os dentes para resistir à mudança e ignorar que a vida é movimento que necessitamos acompanhar. Enlutamos quando perdemos aquele emprego que odiávamos, quando perdemos um amor, quando os filhos deixam de precisar de nós, quando nos divorciamos do sofrimento de um casamento sem sentido, quando perdemos nossas formas corporais conhecidas, quando envelhecemos, quando vemos amigos queridos partirem...
Nos últimos tempos vi muitos queridos virarem borboletas e voarem para jardins distantes. Acredito que as borboletas devam ser muito mais felizes e livres do que as lagartas, mas sinto falta delas no meu jardim.
Amanhã fico triste, hoje não.
Hoje preciso estar mais atenta, olhar com olhos de ver...
Preciso cuidar do meu jardim para que as borboletas que ainda estão por aqui tenham a minha companhia e eu a delas.
Amanhã fico triste, hoje não.
Flor de Maio